Espetáculo MilTons do Coral da UFMT é canto de comunhão à música, ao artista e ao público

*Thaís Leão Vieira

“Cantar é buscar o caminho que vai dar no sol”

 

“Todo artista tem de ir aonde o povo está”, assim diz a canção. Após quase três anos da pandemia de Covid-19, o coral da Universidade Federal de Mato Grosso volta aos palcos novamente em 2022 com um grupo de músicos, instrumentistas e cantores, formado por alunos, ex-alunos, servidores da UFMT e comunidade em geral, com o espetáculo em homenagem a Milton Nascimento intitulado MilTons. Tudo se passa no palco com uma narrativa poética dividida em cinco partes e o trabalho resulta numa fusão entre música, texto e performance. MilTons é um espetáculo de conjunto e deve ser “lido” como uma ode de amor à música.

O valioso trabalho de Dorit Kolling contribui não apenas para que o espectador que não tenha tanta intimidade com a obra de Milton seja levado a conhecer suas nuances e seus muitos tons, mas também para elaborar um roteiro por sua obra por meio da apresentação de diferentes fases da vida da grande voz do Brasil. Mas, não nos enganemos, o roteiro do espetáculo não é tomado por um didatismo simplório cronológico da obra do compositor mineiro. O espetáculo poderia ser dividido entre três temas principais: apresentação de Milton na primeira e segunda partes, o tema da resistência negra celebrada em sua coragem e força e o tributo à música nas três últimas partes.

A primeira parte inicia com Sentinela, quase como um aviso para nós do público de que “Longe, longe, ouço essa voz que o tempo não vai levar”. Durante o desenrolar da história de Milton, passamos por A primeira estrela, do álbum Encontro e despedidas (1985) e Fé cega, faca amolada, do disco Minas (1975), cujos versos revelam a trajetória de Milton em oposição ao regime militar no Brasil: “Eu já estou com o pé nessa estrada. Qualquer dia a gente se vê. Sei que nada será como antes, amanhã”. Sobre seu “Nascimento”, Dorit Kolling soube recortar a soberania em Milton com Louva-a-deus (Nascimento, 1997): sua forte base percussiva e os vínculos entre o sagrado e o profano. Surpreende não apenas os excelentes percursionistas, mas a maneira como os coralistas fizeram, do chão do palco, tambores de Minas. Para finalizar o “primeiro ato”, o grande solo de Caroline Braga e Talles Matos reforça o espírito de um novo tempo com Credo, que abre o álbum Clube da esquina 2 (1978), e a esperança no amanhã: “Caminhando pela noite de nossa cidade. Acendendo a esperança e apagando a escuridão. […] Tenha fé no nosso povo que ele resiste”.

Os instrumentistas foram responsáveis por dar início às tantas nuances das relações de Milton com Elis Regina e outros tantos grandes amigos. É o caso de Trem Azul de Clube da Esquina (1972), Essa voz (1982) e Canção amiga (1978), em um dos momentos de maior lirismo do espetáculo, abrindo caminho para uma ciranda de vozes que parece querer nos conduzir aos sonhos e utopias de “Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças” e “Todo dia é de viver. Para ser o que for. E ser tudo. Sim, todo amor é sagrado” para o chão, onde se irradiam nossas raízes.

Numa interpretação pungente de Cláudia Menezes e Neto Nascimento, o texto de Fernando Brant, Era rei e sou escravo, marca importante momento do espetáculo que traz várias canções do musical “Maria, Maria”, com letras de Fernando Brant e musicado por Milton Nascimento, baseado na vida de duas mulheres negras que viveram em Diamantina, do grupo de dança O Corpo em 1976. Era rei e sou escravo, “Os escravos de Jó (Caxangá), Maria solidária e Maria, Maria fazem parte desse momento cuja narrativa não fala apenas de um passado; antes, engendra nosso cotidiano no presente: “Luto para viver, vivo para morrer. Enquanto minha morte não vem, eu vivo de brigar contra o rei”, e as resistências cruzam as fronteiras entre passado e presente: “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria, Maria mistura a dor e alegria”.

Por fim, o espetáculo traz um tributo à música com o lancinante texto declamado pelas brilhantes Ana Lia Rodrigues, Cristina Brauner, Alessandra Gonçalves e Sônia Lourenço. “Todo canto é um farol […] Todo canto sempre será o contrário da solidão […] o meu canto sempre chuta o traseiro do ditador […] todo homem quer ser parceiro, quer festejar, cantar, cantar e cantar…” Também O rouxinol, cantada por Blandina Martinho e Greice Vargas, e Travessia (1967), com Adonys Aguiar, carregam essas marcas da música, do canto, da arte como ferramentas de beleza: “Rouxinol me ensinou que é só não temer. Cantou, se hospedou em mim” que levam pelos caminhos/travessias de uma comunhão: “Já não quero parar. Meu caminho é de pedra. Como posso sonhar? Sonho feito de brisa. Vento, vem terminar. Vou fechar o meu pranto”.

Se é verdade que uma andorinha só não faz verão, precisamos reconhecer que não estamos sós. Por isso, MilTtons é um espetáculo generoso. Ouvir as canções de Milton nos faz pessoas melhores. Comungar delas com esse canto em muitos tons e nuances é próprio dos que acreditam no papel da arte como formação para a democracia: “Quero a alegria muita gente feliz, quero que a justiça reine em meu país”. O canto coletivo ganha força pelas mãos de Dorit Kolling em contato com diferentes mundos de experiência que são trazidas à música de Milton para prova da vida de todos nós.

*Thais Leão Vieira é Doutora em História e Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em História da UFMT, campus Cuiabá.

 

Cayron Fraga

Cayron Fraga

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