*Thaís Leão Vieira
“Sabe por que só como raízes? Porque as raízes são importantes.”
Paolo Sorrentino, no filme A grande beleza.
Artistas são o tempo que a presença humana qualifica. Suas realidades não são constituídas de substâncias abstratas; possuem raízes. Suas obras emergem de uma presença, da atmosfera de um tempo, como diria Gumbrecht. Por isso a história das artes não se restringe a descrever tendências e gêneros estéticos. Muito mais do que isso, o historiador que não quer ser apenas um catalogador, deve colher o sentido das intenções que formaram as produções simbólicas, apreender pelo tempo as marcas do sensível, da atmosfera que permeia a presença viva de uma temporalidade.
A atmosfera é decisiva para a compreensão das ideias, do pensamento, da arte. É nela que podemos tentar apreender a poesia cantada em prosa e verso na voz feérica de Gal Costa. Talvez por isso sua morte seja tão desconcertante no Brasil de hoje — tempo em que se combate a educação, a ciência e a arte, em que a democracia é usurpada e, sob o pretexto de liberdade de expressão, levada ao limite para depois censurar. No tempo em que uns vociferam “pela intervenção militar”, vem à lembrança aquela mesma Gal que cantou, em pleno AI-5: “Sobre um pátio abandonado / Profetas nos corredores / Mortos embaixo da escada / No fundo do peito, esse fruto apodrecendo a cada dentada” — música Hotel das estrelas, de Jards Macalé e Duda Machado, gravada por Gal no álbum “Legal” de 1970.
Se analisarmos a conjuntura sonora de Gal é possível reencontrar diversos Brasis. Um país soturno marcado pela distância do exílio em “tudo vai mal, tudo / tudo é igual quando eu canto e sou mudo/ mas eu não minto não minto/ estou longe e perto”, de “Como 2 e 2” de Caetano no álbum “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor” de 1971. E um país em busca da internacionalização cultural como em “Baby”, de Caetano Veloso e arranjo de Rogério Duprat, gravada em 1969 em “Gal Costa”, dentre tantas outras canções nas quais Duprat, Damiano Cozzella, Sandino Hohagen e Júlio Medaglia empregaram linguagens de diferentes vertentes vanguardistas europeias compromissadas com a abolição do sistema tonal, como as experiências do concretismo francês ou a escola eletroacústica alemã.
Muito já se disse sobre as influências da literatura, em especial do concretismo, no tropicalismo: seus versos livres e soltos, uma linguagem crítica em relação à sociedade de consumo, à política brasileira do período e a todos os problemas que estavam ocorrendo, que teriam dado resultado a uma proposta estética que ao mesmo tempo buscava retorno a uma identidade nacional e a abertura para a internacionalização cultural. Os Brasis de Gal são os muitos de Waly Salomão, Hélio Oiticica, Torquato Neto, Jorge Ben, Luiz Melodia, Tom Zé, João Donato, Jards Macalé, Milton Nascimento, Gilberto Gil, de Caetano Veloso, de Bethânia e tantos mais. É o país de “Vapor barato”, de Jards Macalé e Way Salomão: “Oh sim, eu estou tão cansado / Mas não pra dizer que eu estou indo embora / Talvez eu volte, um dia eu volto / Mas eu quero esquecê-la, eu preciso / Oh, minha grande, ah minha pequena, oh minha grande obsessão”. Mas é o Brasil de “Luz do sol” de Carlos Pinto e Wally Salomão: “Quero ver de novo a luz do sol / Que me brilha, acende, aquece e me queima / Batendo na porta do meu lar”.
Se analisarmos as opções sonoras de Gal percebemos uma locução oral-popular que não se perde. Não por acaso, “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira de 1950, está em “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor” como um lamento à ausência de Caetano e Gil: “Assum preto, o meu cantar / é tão triste como o teu / Também roubaro o meu amor/ que era a luz, ai, dos óios meus”. Aos olhos de uma visão reducionista, o diálogo de Gal era com a semântica concretista, com a revolução eletrônica e até futurista. Em Gal nossa voz não é só politonalismo e desejo de romper com a tradição. É também Lupicínio Rodrigues, Adoniran Barbosa, Luiz Gonzaga. O reencontro do tempo antigo com o presente é um fenômeno que nos faz retomar diversos Brasis. Não por acaso, o fazer artístico é paradigma nas rupturas históricas, pois, a memória que vive do tempo pretérito, também a supera. Gal fez com sua voz uma pulsação criadora que espreita a vida na cultura popular: “Eu sou uma fruta gogóia, eu sou uma moça/ Eu sou calunga de louça, eu sou uma jóia/ Eu sou a chuva que móia, que refresca bem/ Eu sou o balanço do trem, carreira de tróia”.
Concluo, voltando o olhar para o Brasil. Quando parte da população escancara seus preconceitos, o sexismo, o racismo, a aniquilação da escolha, é preciso olhar para suas raízes. Elas giram em torno de uma herança partilhada. A morte não é apenas o fim, mas também o silêncio que se avizinha. Entre o fim e o início há uma espécie de lamento nostálgico e luto que precisamos viver. Gal é magistral porque em sua voz nos trouxe tantas, nos legou nossas raízes não como relíquias; são nossas porque se tornaram nossas. E se há retrato em branco e preto a nos maltratar o coração, Gal, “amor da cabeça aos pés”, é o Brasil que cura.
*Thais Leão Vieira é Doutora em História e Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em História da UFMT, campus Cuiabá.