Live NPC: um problema moral?

A primeira vez que li sobre a live NPC eu jurava que fosse alguma pegadinha, alguma brincadeira de mau gosto de alguma reportagem. Pra minha surpresa não era. A realidade de uma geração emburrecida – com um QI abaixo dos pais e avós – ficou explícita e me pareceu algo aterrorizante.


Se você não sabe o que é a live NPC – non-playable character (personagem não jogável ou simplesmente os figurantes não jogáveis que aparecem nos jogos virtuais), resumidamente, trata-se de uma live realizada no TikTok onde o público envia presentes – símbolos – que valem dinheiro. Cada símbolo comprado – com valores que variam de $100 a $ 500 dólares – aparecem na tela gerando reações dos streamers com frases e movimentos específicos. A ideia é que, a cada símbolo comprado o público decide o que o personagem deve fazer a seguir. No entanto, o mais chocante nisso é que os movimentos são limitados, repetitivos e ridicularizantes. Alguns são fetichizados com performances infantilizadas.


Melhor do que descrever, é ver com os próprios olhos:

Reprodução: Youtube

Analisando um pouco mais de perto e lendo as inúmeras reportagens nacionais e internacionais sobre o assunto, percebemos que o problema é um pouco mais complexo. Existe uma espécie de “acordo” entre os streamers que produzem a live e por quem paga pelo prolongamento da mesma e a base desse acordo nada mais é que o bullyng da internet, mais conhecido como cyberbullying.


Isso significa que há o uso de tecnologia envolvida como: redes sociais, mensagens virtuais de qualquer natureza (como as lives) entre outros meios de comunicação digital que são usados para assediar, ameaçar, difamar ou prejudicar emocionalmente outra pessoa. Há vários tipos de cyberbullying e entre eles estão:


• Assédio online: mensagens, comentários ou postagens ofensivas direcionadas a uma pessoa.
• Difamação: espalhar informações falsas ou prejudiciais sobre alguém.
• Perseguição online: perseguir e assediar alguém repetidamente.
• Exclusão social: excluir deliberadamente alguém de grupos online ou redes sociais.
• Ameaças online: ameaçar fisicamente ou emocionalmente outra pessoa.
• Humilhação online: postar imagens ou vídeos embaraçosos ou prejudiciais de alguém


No caso do NPC, esse ultimo ponto é o que se encaixa perfeitamente na ação uma vez que, a ideia por trás dos pagamentos de quem assiste é justamente proporcionar humilhação e situações embaraçosas a quem transmite a live. Há uma nítida necessidade de exercer poder de humilhação aos streamers que por sua vez, aceita a humilhação em troca de dinheiro.


Por que é um problema moral?


Os problemas morais envolvem questões éticas e de valor que exigem considerações sobre o que é certo ou errado, bom ou ruim. Eles variam de contexto para contexto, complexidade e assunto, mas ao mesmo tempo apresentam algumas características comuns que os distinguem de outros tipos de problemas. São muitas as características que definem um problema moral, mas aqui eu destaco dois:

Dilema de valores: os problemas morais frequentemente envolvem conflitos entre valores ou princípios morais, onde escolher uma ação – com base em um valor – pode entrar em conflito com outro valor importante.

Impacto nas pessoas: problemas morais geralmente têm um impacto significativo nas pessoas envolvidas e podem causar consequências emocionais, sociais e pessoais devastadoras.


Se analisarmos bem, qualquer tipo de humilhação se enquadra como uma característica daquilo que não é moralmente correto, pois, é uma ação que causa impacto negativo nas pessoas violando os princípios éticos fundamentais a saber:

1) Fere a dignidade humana: degradação da dignidade de uma pessoa, tratando-a de maneira desrespeitosa, depreciativa ou degradante;


2) Causa dano psicológico: sofrimento emocional e psicológico significativo às vítimas desencadeando problemas de ansiedade e depressão.


3) Violência Moral: envolve prejudicar deliberadamente a autoestima e a integridade emocional de outra pessoa;


4) Falta de Empatia e Respeito: A humilhação reflete diretamente a falta de empatia e respeito pelos sentimentos e pela dignidade das pessoas sendo a empatia o princípio fundamental de toda teoria ética;


5) Impacto nas Relações Sociais: prejudica as relações sociais, criando hostilidade, ressentimento e conflitos entre as pessoas. Isso pode afetar negativamente a coesão social e a harmonia nas comunidades;


6) Arrependimentos: Atividade com alto grau de probabilidade de causar arrependimento futuro e consequentemente, graves problemas psicológicos;


7) Estímulo à atividades moralmente erradas: aqui há o sério risco de se normalizar atitudes imorais como o bullying e o ciberbullying;


Embora as tecnologias sejam ferramentas importantes do desenvolvimento humano e cada avanço tecnológica da nova deva ser visto com bons olhos, é preciso ter responsabilidade e cautela no seu uso. As lives NPC oferecidas pelo TikTok vão na contramão do que se entende como ética digital, pois, promovem um ambiente de hostilização, humilhação e desrespeito com a dignidade humana. Dito isso e longe de querer demonizar a tecnologia em si mesma, há ainda outros fatores fundamentais para serem pensados como estimuladores de tais comportamentos.


Atualmente, pesquisas apontam que a geração Z – nascidos entre 1995 e 2010 – , é a geração com mais problemas emocionais, envolvendo depressão e transtornos de ansiedade. Especialistas defendem que, dentre as mudanças culturais, tecnológicos, sociais e políticos, há também – e primordialmente – o fator educacional.


Uma pesquisa realizada neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França e posteriormente publicada no livro intitulado A Fábrica de Cretinos Digitais, traz algumas questões interessantes para pensarmos os porquês que levaram o QI da nova geração – Z – ser consideravelmente menor do que das gerações anteriores, quando vivemos na era da informação gratuita e imediata. Um dos fatores que vem sendo estudado é justamente o tempo recreativo de tela em que uma criança fica exposta. Segundo ele “vários estudos têm mostrado que quando o uso de televisão ou videogame aumenta, o QI e o desenvolvimento cognitivo diminuem.(…) Os principais alicerces da nossa inteligência são afetados: linguagem, concentração, memória, cultura (definida como um corpo de conhecimento que nos ajuda a organizar e compreender o mundo). Em última análise, esses impactos levam a uma queda significativa no desempenho acadêmico”. Noutras palavras, as telas estão substituindo a educação, a interação e o tempo em que essas crianças poderiam se dedicar à leitura, música, arte e atividades livres. O preço a ser pago é alto, pois, segundo o pesquisador, “as interações intrafamiliares são essenciais para o desenvolvimento da linguagem e do emocional”. Há também um fator físico-neural quando não há um equilíbrio entre as atividades: “Observou-se que o tempo gasto em frente a uma tela para fins recreativos atrasa a maturação anatômica e funcional do cérebro em várias redes cognitivas relacionadas à linguagem e à atenção”.


Para finalizar, repito, não se trata de demonizar as tecnologias em si mesmo, nem de banalizar tudo de bom que ela nos proporciona para as áreas da cultura em geral, mas de realçar que, as coisas podem ser boas ou más de acordo com que os indivíduos fazem delas. Uma sociedade equilibrada depende do que Aristóteles chamava de Justa Medida, ou seja, a virtude é um ponto intermediário entre os extremos, que ele chamava de “vícios”. Esses extremos representam excessos e deficiências. Sendo assim, encontrar o ponto de equilíbrio entre esses extremos é o que torna uma sociedade igualmente equilibrada, mais justa e mais virtuosa.


Fonte da pesquisa: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54736513

Di Fraga

Di Fraga

Filósofa, Mestre em Cultural Contemporânea e Doutora em Filosofia, possui experiência na área de comunicação, marketing digital e fotógrafa Fine Art. Áreas de interesses: arte, política, Neuromarketing e Neuroestética.

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